Há escritores que narram por desejo de inventar novos mundos, já outros o fazem por uma necessidade quase somática, como condição de sobrevivência. Ambos podem fazer grande literatura, mas no último grupo a própria arte literária é quase sempre ressignificada. Isso é patente no caso de Herta Müller, essa escritora de língua alemã e de origem na minoria germânica da Romênia, agraciada com o Nobel de Literatura de 2009.
Em seus textos, reunidos no volume agora publicado Sempre a Mesma Neve e Sempre o Mesmo Tio, percebemos o quanto sua escrita é original – a começar pelo título. Pode ser caracterizada como o resultado de um processo que ela mesma descreve, ao tentar explicar a literatura de M. Blecher: “CONHECER é um rastro formado pelo corpo”. Estamos falando de uma literatura feita como rastro do corpo traduzido em palavras. Escrita visceral, portanto, que não permite uma distinção muito clara entre os gêneros literários.
Esta obra reúne, além de alguns textos publicados em jornais, seus discursos de agradecimento a inúmeros prêmios. Os leitores da ficcionista Herta Müller vão perceber o quanto sua prosa de ocasião se mistura com seus textos publicados na chave do literário. Nota-se a continuidade dos temas e mesmo da forma de escrever. Rever a história
Müller vê em cada gesto de agradecer a um prêmio ou homenagem a oportunidade para rever sua própria história. Tentar significá-la. Talvez faça isso justamente porque tem total consciência de que sua obra homenageada é uma manifestação de sua história de vida.
Neste volume, sua existência se transforma em um verdadeiro romance de vida. Vários personagens – amigos como Oskar Pastior ou sua colega de trabalho na fábrica romena, Jenny – reaparecem ao longo dos textos em cenas que vão construindo o percurso de sua protagonista.
Essas histórias se reportam de modo insistente às cenas de origem da autora: o campo e o vilarejo onde trabalhou como tradutora em uma fábrica de tratores. Um dos personagens principais é o Estado autoritário da ditadura Ceauşescu: “Na cidade o Estado estava em todo o lugar”.
A escrita de Herta Müller é apresentada no livro como o resultado de uma paradoxal nostalgia da sua infância no campo (período ensombrecido pela imagem de um pai alcoólatra e nazista) e da resistência contra a onipresença do Estado.
Ela e seus amigos na cidade tentavam resistir a esse rapto da esfera privada. Buscavam construir “nichos privados, onde a trapaça ainda não havia se infiltrado”. Para tentar conversar longe dos ouvidos do Estado, eles colocavam música alta na vitrola e os aparelhos de telefone dentro da geladeira.
Depois ela veio a descobrir, ao consultar, após 1989, seus arquivos no serviço secreto, que seu apartamento tinha microfones por toda parte. Müller e seus amigos surgem, assim, como habitantes de uma distopia, como as que Orwell e Huxley descreveram.
Herta Müller também apresenta sua luta pela verdade após a queda de Ceauşescu, como teve que brigar por anos para obter seu dossiê junto ao serviço secreto, a Securitate. Ela nota com desgosto o quanto o fim da ditadura não se deixou traduzir em uma real abertura dos arquivos.
Contra a lógica da continuidade disfarçada em democratização, Müller insiste na busca da verdade e é perseguida tanto por antigos membros da Securitate (que após 1989 continuam ligados ao poder e passam a constituir a nova burguesia) como por outros alemães de origem romena que também não tinham interesse em revolver o passado e seu envolvimento com o regime opressor.
Assim, sua vida e, consequentemente, sua escrita são desenhadas neste livro como a concretização do destino do intelectual engajado contra as arbitrariedades e injustiças.
Esse topos, típico de autores como Camus e Sartre, em uma era pós-utópica, estava em declínio e correndo o risco de extinção. Müller o retoma, mas em nota mais baixa, sem a autoespetacularização do intelectual engajado. Marca feminina
Sua marca, por assim dizer “feminina”, traz a escrita do corpo para o centro da cena literária que se faz, para ela, contra autoridades patriarcais (do pai e do Estado violentos). “Depois da morte de meu pai, comecei a escrever”, anota Müller, sobre esse momento catártico em sua vida.
A partir de então, o vivido deveria reaparecer em sua literatura: passa a inventar, imaginar, para atingir o “acontecido real”. Ela descreve sua necessidade de escrever:
“A escrita começou no silêncio… O acontecido não podia mais ser articulado no falar… Eu reagi ao medo da morte com ânsia de viver. Tratava-se de uma ânsia de palavras. Só o torvelinho das palavras podia abarcar meu estado. Ele soletrava aquilo que não podia ser dito com a boca.”
Ou ainda, em uma formulação compacta: “O que não escrevo… me devora”.
Sua escrita nasce também contra a “cultura oficial” promovida pelo Estado totalitário, com suas canções infantis em homenagem ao ditador e ao partido, seus hits compostos em louvor de uma nova usina hidrelétrica ou contra canções populares que comemoravam recordes na agricultura.
Da “loucura vivida”, que era na verdade (pensando nas distopias) “literatura praticada”, a escrita de Müller nasce como de um jorro. Ela permitia elaborar a “loucura”, ou seja, a “razão de Estado” instituída verdade absoluta.
Müller tem que reinventar a palavra poética em meio ao triunfo esmagador da prosa da burocracia. A originalidade de sua linguagem tem, em parte, sua explicação nesse ponto. Ela precisa extrair a linguagem de cada objeto e de cada situação, como se estivesse refazendo as bodas entre as palavras e o mundo.
Para além de todas as qualidades intrínsecas ao livro, trata-se de uma leitura muito oportuna agora que estamos também buscando rediscutir no Brasil nosso passado ditatorial. Encontramos aqui muitos argumentos de peso a favor da abertura dos arquivos da ditadura e a apresentação dos benefícios em se enfrentar o passado, ao invés de ocultá-lo.
Marcio Seligmann-Silva é professor de teoria literária na Unicamp
Fonte/crédito – Revista Cult » O corpo da literatura.
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