DIÁLOGO A SETE PALMOS
Por Carlos Barros
Quando era vivo, quando sentia o ar penetrando em minhas narinas, nunca busquei refletir sobre a morte. Encontro-me agora dentro de um caixão. Na escuridão de um túmulo. Meu falecimento ocorreu há cerca de trinta dias. Meu corpo passa por transformações. Líquidos que escorrem e fortes odores. Mas não estou só. Vermes incansáveis me devoram. Adentrando em todos os orifícios do meu corpo. Um deles, que passeia no ouvido direito, rompe o silêncio:
– O que está pensando, morto querido?
– Pensava em meu corpo antes de morrer. Como adorava me olhar no espelho.
– É isto, meu caro. A morte chega para todos e deixa para nós este saboroso banquete.
– E o que acha do sabor da minha carne? – Indaguei.
– Uma boa pergunta, meu caro. Tua carne possui sabores distintos.
– Como assim?
– Queres mesmo saber?
– Sim! Humanos civilizados jamais devoraram carne humana. – Respondi.
Outro verme, que devorava meu coração, resolve falar.
– Companheiro, gostaria de responder tal questão.
– À vontade, prezado irmão comedor. – Disse o primeiro verme.
– Meu caro, neste momento estou devorando teu coração. Ele tem um delicioso sabor de orgulho com suave aroma de vaidade. Meus companheiros afirmam que teu lado esquerdo do peito é um apetitoso cardápio de falsidade, soberba e egoísmo. Eis o sabor do teu coração que parou de bater para sempre.
Não pude conter as lágrimas. Neste momento, outro verme que comia meu cérebro decide participar do diálogo.
– Meu caro, desejas saber o gosto do teu cérebro? – Indagou.
– Sim!
– Pois, escuta com atenção. Esperava me banquetear com os deliciosos pratos de sentimentos. Para minha surpresa, não encontrei o tal amor, a solidariedade, e a humildade que tanto tu falavas quando vivo. Mas, passado o primeiro instante, nos contentamos em devorar teu cérebro com sabor de racionalidade e pragmatismo. Curiosamente, o lado direito do teu órgão pensante tem sabor de mentira, mas com cheiro de verdade. Por vezes, confundo o sabor. Quando penso estar devorando a verdade, eis que me dou conta de tratar-se de mentira. Mas não fique desolado, pois ambas são apetitosas. Não poderia deixar de mencionar o sabor que encontramos um pouco abaixo do teu crânio. Como tu eras doutor e um homem das ciências, sentimos um gosto amargo de Conhecimento. E, obviamente, não deixamos de comer todo este acúmulo de Ciência. Aliás, o cheiro de tal Ciência nos fez lembrar o cérebro que devoramos de um velho senhor que nunca estudou em vida. Sei que devo estar lhe cansando com toda esta culinária. Mas, antes de concluir, devo lembrar que comemos teu bem e teu mal. Estranho gosto híbrido. Meus companheiros vermes dividiram-se na opinião. Alguns apreciaram o sabor do teu mal, outros, ao contrário, salivaram com teu bem. No entanto, foi unânime entre nós que, na maioria das vezes, não tínhamos certeza o que era bem ou mal. No fim, devoramos os dois em um. Agradecemos a refeição, meu caro.
– Chega! – Gritei.
A dor provocada por tais palavras fizera-me sofrer mais do que a certeza de estar morto. Os sábios vermes abriram meus devorados olhos para o que fui e o que agora sou. Não haverá outra vida. Já não cabe lamentar. Minhas lágrimas serão oferecidas como vinho aos devoradores de um morto arrependido. Que este banquete possa chegar logo ao seu término. Que a saudade da Vida seja a principal oferenda para estes minúsculos servidores públicos da Morte.
Por Carlos Barros
Saberes e Olhares
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meu amigo vc é D+ nunca tinha visto tanta sabedoria! parabéns!!!
Querida Anna. Seu comentário me deixa feliz e ainda mais motivado. Obrigado por ler e apreciar. Forte abraço e volte sempre! Carlos Barros